“Todo
documento de cultura, é um documento de barbárie”.
Walter Benjamin
Acabara de me formar na
Escola de Arte Dramática da USP. Era funcionário do Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª. Região - SP. As duas funções que exercia na vida profissional
pareciam inconciliáveis. Por um lado, a liberdade de expressão de um jovem idealista
interiorano, que se propõe a buscar na metrópole paulista transgredir a moral
conservadora, que sempre me perturbara desde muito cedo. Basta aqui, citar uma
passagem deveras interessante e esclarecedora: na minha pequena cidade de
Severínia, tinha um cinema, com advento da televisão, todos estes espaços
culturais foram paulatinamente sendo fechados. Restava o footing da praça central, os bailes onde o meu corpo passou a
romper os padrões ditos “normais” de dançar, juntamente com um grupo não muito
numeroso; as idas às zonas de prostituição, isto quem tinha dinheiro para
pagar, o que me enojava; os namoros escondidos entre os arbustos e recantos da
cidade, e a iniciação em determinados tipos de drogas muito comum naqueles
inícios de setenta. Vejam, eram um Brasil sob os auspícios da ditadura militar,
em que eu observava atentamente os acontecimentos pelos noticiários, revistas e
os jornais da época. Mas, tudo isto pareceria muito distante, queria me
aproximar daquele furacão que se alastrava pelo Brasil.
O flash-back propõe uma leitura não-linear, mas aos saltos. Voltando
ao cinema! Um dos últimos filmes que assisti na minha cidade foi Satyricon de Fellini. As imagens
transgressoras estampadas no cartaz atraiu uma multidão, que estava acostumada
aos Sansões e Dalila, Dólar Furado, Mazzaropi e os épicos do cinema americano,
e o que estava para ser exibido na telona, era uma novidade! Bem, eu fiquei
encantado com o que estava vendo. Não percebi que aos poucos meus amigos e
praticamente o cinema todo ficara vazio, restando uns gatos pingados. Eu não
entendi o que estava acontecendo, mas não queria pensar sobre aquilo naquele
momento. Eu tinha certeza que encontrara o que estava querendo ver e o mundo da
arte que estava querendo mergulhar. Restava agora caminhar pela rua solitária,
ainda sob o efeito-choque que o filme me proporcionara. Minha cabeça funcionava
a mil por hora: como enfrentar os leões dos meus amigos das noites do “coça
saco” na praça, de que forma me defender, se não tinha ainda elementos
estéticos de defesa, para falar sobre o que acabara de presenciar?
Literalmente, eles me trucidaram e mostraram o quão conservadores eles eram.
Foi aí que percebi que ali não era mais o meu lugar!
Mas, o episódio
Satyricon, ainda não terminara. Fui atrás de material que pudesse esclarecer a
percepção estética refinada que o filme me proporcionara. Achei um documento:
uma revista recente, com umas três paginas dedicadas a elogiar o filme do
mestre italiano Fellini, e o sucesso de bilheteria nos grandes centros do país.
Levei a revista para os meus amigos na praça e li a reportagem inteira, que
ficaram de cara no chão, mas acharam mesmo assim, que aquilo era “putaria”,
“sem-vergonhice”, “coisa de desviados”, etc e tal. Mas tinha cumprido o que me
prometera: desmascarar a hipocrisia!
Voltando à contradição
entre ser artista de teatro e funcionário público. Irritava-me às vezes, as
sentenças, em que poucos eram os ganhos dos trabalhadores, e mais dos
empresários. Mas sempre acreditei que a Justiça mesmo assim os defendia. Naquele
período, o teatro era governado sob a égide da censura, e assim, caminhava aos
trancos e barrancos, dando murro em ponta de faca, mas os mais bravos artistas
e intelectuais resistiam contra a agressão física e simbólica. Era um período
difícil! A Aids se alastrou! Perdemos amigos queridos. Éramos tratados como
leprosos. Mas, todos sabem o desfecho: quem não se cuida se estrumbica! E a
AIDS não era uma epidemia somente de homossexuais!
Decidi abdicar do
salário que prometia sempre subir e da tristeza que se abatia em São Paulo, era
quase insuportável tudo aquilo que estava vivendo. Ganhei o mundo. Atravessei a
transamazônica, fui parar no meio da floresta, e fui percebendo o quanto
tínhamos sido roubados: a floresta
engolira a estrada de ferro que se alastrara para roubar nossas riquezas.
Agora, íamos lá buscar os trilhos de ferro, única riqueza que restara de nossos
colonizadores, claro, para os bolsos de outros mais bem sucedidos em nossa
sociedade.
A exuberância do Pará
me fascinara, mas também a tristeza continuava à tiracolo. Quando assumi sair
pelo mundo-Brasil não acreditava que tudo seria maravilha, pelo contrário, não
era tão desinformado assim. Mas precisava continuar: fui para Fortaleza -
Ceará. O dinheiro que guardara acabou rapidamente. Não podia dar aula em escola
pública, porque não era formado em Licenciatura em Teatro. Restava assim - o
artesanato! Naquele período, a era hippie
já era ultrapassada, não me sentia um deles! Não queria viver pelas ruas, em
qualquer lugar - um homless.
Circulava entre os estudantes da Universidade Federal do Ceará, as delícias das
águas cristalinas das cachoeiras de Maranguape e a beleza paradisíaca de Canoa
Quebrada, quando ainda era paraíso, hoje, um dinossauro do capitalismo à céu
aberto sobre as antigas dunas brancas soterradas pelo luxo dos milionários do Brasil
e do mundo. Isto foi o que vi, depois de trinta anos. Era aqui que queria
chegar!
Mas para chegar aqui,
voltei à São Paulo, cursei Licenciatura em Teatro, lecionei em escolas da
capital, e depois, voltei ao nordeste, para o Maranhão - UFMA, voltei a ser
funcionário público, mas agora da Educação, onde pretendia chegar. Vejam que a
contradição entre ser funcionário público e ser artista já não me perturbava
mais. Educação e Teatro passaram a fazer parte do meu menu profissional. Caiu por terra a idéia de ser somente artista.
Para mim, as duas coisas passaram a fazer parte do que hoje se denomina na
academia: artista-docente!
Mas, o Maranhão tem
seus mistérios. A Ilha rebelde, encantada, dos amores, da maior oligarquia
brasileira, continua ... Mas, a revolta de vaqueiros, sertanejos, caboclos,
índios, negros aquilombados, libertos, etc, aqui fez sua morada: a Balaiada.
Atrás das belezas e da riqueza deste Estado, esconde-se a miséria, a corrupção,
e o desgoverno, não muito diferente em outros recantos encantados deste imenso
latifúndio empresarial. Mas, aqui a resistência se faz presente na cultura
popular e na cultura erudita também.
Mas porque dei tantas
voltas? Por que é necessário voltar ao passado, entremeando o presente, e
projetarmos no futuro? Porque eu queria falar brevemente sobre o projeto
memória e encenação do Cena Aberta, já exposto aqui neste blogspot, e de nossa ida para Aracati, para participar do IX FESTMAR - Festival
Internacional de Teatro de Rua, que aconteceu entre os dias 21 a 25 de outubro
de 2013, na cidade histórica de Aracati, que está completando 171 aninhos.
A alegria dos
profissionais do Teatro de Rua esteve presente nesta semana inesquecível. Talvez
vocês entendam o por que da emoção e das voltas que dei para chegar aqui. Isto
é uma narração, com características épicas, líricas e dramáticas, poderia fazer
parte de uma performance, vou pensar
sobre isso! Tem elementos de teatralidade, ambigüidade, performatividade, que
não posso expor aqui - a cena será mais propícia! Bem, o intercâmbio teatral
entre os artistas foi o ponto chave de toda esta experiência. Um detalhe
refinado de nossa apresentação de Negro
Cosme em Movimento na frente da catedral da cidade: uma criança de sete anos,
nos parou, e perguntou - o teatro acabou? Nós: Sim, hoje pela manhã, aqui em
frente, na Secretaria da Cultura. Ela: Eu sei onde é. Nós: Você viu Negro
Cosme? Ela: Sim! Nós: Gostou? Ela: Sim. Tem mais, quando? Nós: O ano que vêm!
Ela: Preciso ir, minha mãe está me chamando, é aquela ali. A mãe abanava a mão
para a garota, e ela se perdeu no meio da multidão da Praça da Igreja Matriz,
que comemorava os 171 anos da cidade, com o céu bordado de explosões coloridas
dos fogos de artifícios.
As crianças de Aracati
foram o ponto alto do evento. Riram e ficaram sérias quando a situação cênica o
exigia. O ciclo se expande: chegamos à
Casa das Bicas, Coroadinho, bairro periférico de São Luís, e para nossa
surpresa, as crianças recebem também o espetáculo entre risos e seriedade, pela
programação da Aldeia SESC-Guajajaras (30/10), e no LABORARTE (31/10),
resistência da cultura popular maranhense, a responsabilidade de apresentar meu
primeiro trabalho de teatro no velho casarão onde formou e abrigou os sonhos de
tantos artistas, e nossa homenagem à
Nelson Brito, que com certeza estará nos vendo com seu olhar de homem que
resistiu enquanto viveu...
Os pequenos
espectadores de hoje, serão os grandes estetas críticos do futuro. Beijos para
todas as crianças de Aracati, do Coroadinho pela co-produção, a todos os
aracatienses, e aos organizadores do Festival. Aos governantes - que continuem
promovendo este encontro dos artistas do Brasil e do mundo... Tanto aqui como
acolá!...
EVOÉ BACO!
Luiz Pazzini
Fotos: Produção IX Festmar