"Estamos reinventando o futuro, somos fragmentos do futuro em gestação, e o que mais nós necessitamos é de um público co-produtor, partícipe da cena, que leve para casa as idéias que o Teatro sempre soube tão bem insuflar nos espíritos educados para que estes possam contribuir para as transformações necessárias que nossa sociedade tem urgência de ver realizadas"

segunda-feira, 18 de março de 2013

Lulu como minha filha...


Cuidando dos objetos de cena e figurinos de Lulu para viagem ao Rio de Janeiro, fiquei refletindo sobre a criação de uma personagem, o processo que se encadeia no decorrer do tempo de convivência com ele e o consequente cuidado e apreço como se esta criatura se materializasse dentro dos nossos lares tomando conta da nossa rotina.
Tudo isso me trouxe a imagem de uma mãe cuidando de seus filhos ou a imagem que tenho da minha própria mãe quando lava nossas roupas, escolhe cada objeto de decoração da casa, prepara nosso jantar com ingredientes especiais e ainda observa tudo que está em volta com um olhar crítico e sempre construtivo, não vê nada com negatividade, preconceito ou indiferença.
Esta é maneira como tenho cuidado de Lulu desde os primeiros passos que foram dados em direção a criação desse papel, afinal como afirma Stanislavski 2003: “As primeiras impressões tem um frescor virginal. São os melhores estímulos possíveis para o entusiasmo e o fervor artístico, duas condições de enorme importância no processo criador”. Pois a relação de afetividade com o personagem é fundamental para o bom desempenho da atriz em cena e esta relação maternal contribui para a compreensão do universo da personagem.
O ator utiliza da teatralidade para comunicar uma mensagem expressa por signos e assim consegue alcançar pontos importantes de discussões relevantes e contemporâneas, mesmo no caso de “Onde está Lulu?” que tem texto escrito no século XIX, mas que ainda hoje traz à luz discussões sobre gênero e sexualidade que são pertinentes aos dias atuais.
“Tomando conta” de Lulu para libertar-me quanto mulher, e ao mesmo tempo libertar-nos de uma porção de conceitos moralizantes que impregnam as relações entre homens e mulheres, observo que este ainda é um campo perigoso e arriscado. Ao experimentar a relação com o público me deparo com seres humanos que oprimem e são oprimidos e que estão sedentos de desejo para libertarem sua libido e se deleitarem com aquilo que seus corpos gritam a favor de seus instintos.
 Lulu então os provoca de maneira agradável, mas deixa homens e mulheres incomodados com sua presença:
Na figura em voga da femme faltale, <<o trauma masculino>> de que fala Hans Mayer, e que emerge na viragem do século, consagrando uma imagem cruel do feminino, adornada pelo adereço exótico e/ou ondulante, o poder extático da dança, a fatalidade da sedução. (COSTA, 1984)
No entanto são abordadas duas facetas, pois apesar da imagem da mulher vista como o pecado original da história de Adão e Eva ou na versão mitológica do mito de Pandora, sabemos que o ser humano está sempre ligado a dois extremos que compõe seu equilíbrio e assim também é Lulu, pois:
Não devemos esquecer, contudo, que essa imagem cruel de Lulu se opõe a imagem complementar de fragilidade simbolizada no nome Mignon, a femme efant, que encontra eco no texto nas várias referências aos <<olhos inocentes>> de Lulu. (COSTA, 1984)
   Estamos em um campo minado e minha aproximação com a personagem as vezes também me deixa confusa, por isso não é de se admirar que o público também cometa este equívoco, mesmo porque toca em um tema que atinge todos em níveis diferentes, e está constantemente me ensinando outras maneiras de ver o mundo que está a minha volta.
Preciso me lançar a personagem, ao texto, aos companheiros de cena e consequentemente ao mundo, para assim trazer uma visão crítica do contexto no qual nos mesmos estamos inseridos, pois já vem de fabrica a maneira que devemos levar a nossa vida, ou o que devemos fazer para sermos aceitos e está visão não nos interessa.
Alcançar as emoções vividas pela personagem e transmiti-las ao público requer minúcia, afeto, amor e disciplina, além de ser uma necessidade, afinal:
Os níveis conscientes de uma peça ou papel são como os níveis e camadas da terra, areia, argila, rochas etc., que compõe a crosta terrestre. À medida que as camadas vão se tornando cada vez mais inconscientes, e lá nas profundidades finais, o âmago da terra, onde se acham a lava fundida e o fogo, lá se desencadeiam paixões e instintos humanos invisíveis. Esse é o reino do superconsciente, o centro vitalizante e o sacrossanto Eu do ator, o humano no artista, a fonte secreta da inspiração. Dessas coisas não temos consciência, porém as sentimos com todo nosso ser. ( STANISLAVSKI, 2003)

                                                                                                                          TEXTO: Lígia d´Cruz
                                                                                                                           FOTO: Taciano Brito

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