Cuidando
dos objetos de cena e figurinos de Lulu para viagem ao Rio de Janeiro, fiquei
refletindo sobre a criação de uma personagem, o processo que se encadeia no
decorrer do tempo de convivência com ele e o consequente cuidado e apreço como
se esta criatura se materializasse dentro dos nossos lares tomando conta da
nossa rotina.
Tudo
isso me trouxe a imagem de uma mãe cuidando de seus filhos ou a imagem que
tenho da minha própria mãe quando lava nossas roupas, escolhe cada objeto de
decoração da casa, prepara nosso jantar com ingredientes especiais e ainda
observa tudo que está em volta com um olhar crítico e sempre construtivo, não
vê nada com negatividade, preconceito ou indiferença.
Esta
é maneira como tenho cuidado de Lulu desde os primeiros passos que foram dados
em direção a criação desse papel, afinal como afirma Stanislavski 2003: “As
primeiras impressões tem um frescor virginal. São os melhores estímulos
possíveis para o entusiasmo e o fervor artístico, duas condições de enorme
importância no processo criador”. Pois a relação de afetividade com o personagem
é fundamental para o bom desempenho da atriz em cena e esta relação maternal
contribui para a compreensão do universo da personagem.
O
ator utiliza da teatralidade para comunicar uma mensagem expressa por signos e assim
consegue alcançar pontos importantes de discussões relevantes e contemporâneas,
mesmo no caso de “Onde está Lulu?” que tem texto escrito no século XIX, mas que
ainda hoje traz à luz discussões sobre gênero e sexualidade que são pertinentes
aos dias atuais.
“Tomando
conta” de Lulu para libertar-me quanto mulher, e ao mesmo tempo libertar-nos de
uma porção de conceitos moralizantes que impregnam as relações entre homens e
mulheres, observo que este ainda é um campo perigoso e arriscado. Ao experimentar
a relação com o público me deparo com seres humanos que oprimem e são oprimidos
e que estão sedentos de desejo para libertarem sua libido e se deleitarem com
aquilo que seus corpos gritam a favor de seus instintos.
Lulu então os provoca de maneira agradável,
mas deixa homens e mulheres incomodados com sua presença:
Na figura em
voga da femme faltale, <<o trauma masculino>> de que fala Hans
Mayer, e que emerge na viragem do século, consagrando uma imagem cruel do
feminino, adornada pelo adereço exótico e/ou ondulante, o poder extático da
dança, a fatalidade da sedução. (COSTA, 1984)
No entanto são
abordadas duas facetas, pois apesar da imagem da mulher vista como o pecado
original da história de Adão e Eva ou na versão mitológica do mito de Pandora,
sabemos que o ser humano está sempre ligado a dois extremos que compõe seu
equilíbrio e assim também é Lulu, pois:
Não devemos
esquecer, contudo, que essa imagem cruel de Lulu se opõe a imagem complementar
de fragilidade simbolizada no nome Mignon, a femme efant, que encontra eco no texto nas várias referências aos
<<olhos inocentes>> de Lulu. (COSTA, 1984)
Estamos em um campo minado e minha aproximação
com a personagem as vezes também me deixa confusa, por isso não é de se admirar
que o público também cometa este equívoco, mesmo porque toca em um tema que
atinge todos em níveis diferentes, e está constantemente me ensinando outras
maneiras de ver o mundo que está a minha volta.
Preciso me lançar a
personagem, ao texto, aos companheiros de cena e consequentemente ao mundo,
para assim trazer uma visão crítica do contexto no qual nos mesmos estamos
inseridos, pois já vem de fabrica a
maneira que devemos levar a nossa vida, ou o que devemos fazer para sermos
aceitos e está visão não nos interessa.
Alcançar as emoções
vividas pela personagem e transmiti-las ao público requer minúcia, afeto, amor
e disciplina, além de ser uma necessidade, afinal:
Os níveis
conscientes de uma peça ou papel são como os níveis e camadas da terra, areia,
argila, rochas etc., que compõe a crosta terrestre. À medida que as camadas vão
se tornando cada vez mais inconscientes, e lá nas profundidades finais, o âmago
da terra, onde se acham a lava fundida e o fogo, lá se desencadeiam paixões e
instintos humanos invisíveis. Esse é o reino do superconsciente, o centro
vitalizante e o sacrossanto Eu do ator, o humano no artista, a fonte secreta da
inspiração. Dessas coisas não temos consciência, porém as sentimos com todo
nosso ser. ( STANISLAVSKI, 2003)
TEXTO: Lígia d´Cruz
FOTO: Taciano Brito
Nenhum comentário:
Postar um comentário