"Estamos reinventando o futuro, somos fragmentos do futuro em gestação, e o que mais nós necessitamos é de um público co-produtor, partícipe da cena, que leve para casa as idéias que o Teatro sempre soube tão bem insuflar nos espíritos educados para que estes possam contribuir para as transformações necessárias que nossa sociedade tem urgência de ver realizadas"

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

PALCO DA MEMÓRIA: TRILOGIA DA BALAIADA

O projeto Memória e Encenação em Movimento: ABC da Cultura Maranhense, PROEX- 2013, da Universidade Federal do Maranhão, é a continuidade da pesquisa que o grupo Cena Aberta desenvolve sobre a Balaiada desde 2005, iniciada com a encenação Diálogos da Memória: Imperador Jones (2007), projeto contemplado pelo edital Jovens Artistas-MEC (2006). O objetivo central é estimular os discentes do Curso de Licenciatura em Teatro à pesquisa e extensão.       
A proposta da encenação do espetáculo “Negro Cosme em Movimento”, do dramaturgo maranhense Igor Nascimento, foi criada tendo como metodologia, o trabalho em processo (work in progress), em que foram realizadas experimentações dos fragmentos do texto, que refletem a trilogia - Invasão da Cadeia da Vila da Manga de Iguará, hoje Nina Rodrigues, a Tomada da Cidade de Caxias/Sufocamento da Revolta e Enforcamento de Negro Cosme em Itapecuru Mirim.
O texto trabalha com as personalidades históricas de uma das mais importantes revoltas que aconteceu durante o Império Brasileiro, a Balaiada, ocorrida no Maranhão, no período de 1838-1841. Neste sentido, o dramaturgo destaca Raimundo Gomes - cara preta (o vaqueiro) da Primeira Estação, que liberta os presos da cadeia de Vl. da Manga, fazendo eclodir a revolta que espalha como rastilho de pólvora pelo sertão oriental maranhense, que chega até o Piauí.  
                A seguir, destaca a presença de Cosme Bento das Chagas, vulgo Negro Cosme, que se auto-intitulou Tutor Imperador da Liberdade, cearense de Sobral, líder do Quilombo Lagoa Amarela, funda uma escola para os quilombolas, assume a revolta com outros líderes da revolta. Os revoltosos invadem Caxias por duas vezes, e são derrotados por Luis Alves Lima e Silva - Duque de Caxias. A última batalha foi travada na localidade de Calabouço, onde Negro Cosme é derrotado com seu exército de negros. Ficou preso na Cadeia de Itapecuru Mirim, e enforcado na Pç. do Mercado Municipal.
                O texto instaura uma discussão sobre a dialética das ações do homem enquanto ente político e social, apontando as contradições que são inerentes à luta não apenas pelo poder, mas por justiça social e igualdade de direitos de uma sociedade em transformação.
                Na tessitura da escritura dramática estas questões desenvolvem-se por meio da fabula, não obstante há uma interdependência das cenas que não se encadeiam linearmente, revelando uma hibridação de gêneros (aspectos épicos, líricos e dramáticos) no cruzamento entre ficção e história, que apontam para o mote essencial desta discussão, pois como diz o próprio autor como narrador - “... pois se a história fosse sempre verdade, não carecia de ser chamada de história, e sim, de verdade e ponto final”.

                A encenação propriamente dita reflete a complexa teia de gêneros presentes no texto, destacando-os, através de um narrador onisciente, que em alguns momentos se confunde com o próprio autor, e no caso da encenação, com o encenador. O lírico, se alicerça nas falas de citações poéticas de autores maranhenses, que deixam seu testemunho ocular da história que não foi contada, e também, a encenação busca privilegiar o canto coral (erudito) e o cordel, típico de nossos improvisadores populares nordestinos (fragmento ainda em processo de construção, que narra a batalha). Neste sentido, a musicalidade do sertanejo contrasta com a crueldade e o aspecto sangrento da revolta.
                Destacamos também o aspecto dramático, quando se defrontam no final, Duque de Caxias e Negro Cosme, encontro que não aconteceu historicamente, mas utilizado como liberdade poética do autor, para discutir através da linguagem metalingüística, a responsabilidade das transformações sociais dos atores sociais (publico); dos personagens históricos, e do compromisso do ator enquanto fisicalizador do personagem-histórico, que impulsiona neste, uma ação consciente de mensageiro no palco.
                A “encenação em movimento” terminologia adotada pelo Cena Aberta em seu processo criador, não se fecha sobre si mesma, mesmo porque é enriquecida pelos aportes teóricos dos estudos in continuum do elenco, das re-elaborações do dramaturgo, da recepção co-produtora dos espectadores e dos participantes da oficina performativa que são incluídos no espetáculo juntamente com o elenco do Cena Aberta.  
                A interpretação do elenco, ora tende ao épico, com a utilização do recurso do distanciamento/comentário do ator, ora ao dramático, com o mergulho do mesmo, nas subjetividades dos personagens-históricos centrais, principalmente no Duque de Caxias e Negro Cosme, que trocam ferpas de agressividade irônica, fazendo cada um se auto-analisar diante das suas atitudes dentro do processo histórico revolucionário.       
                A vela-cenário serve de elemento que impulsiona o ritualístico, o performático da encenação, que em alguns momentos, o público também poderá entrar no jogo com os atores. No ritual o Anjo Infeliz, com os escravos carregam a vela como fardo da história da sua ancestralidade. Na seqüência, ela é aberta, como se tivesse sendo desfraldada a bandeira da sua liberdade, que é a revolta pela sua própria escravidão, mostrando o chão onde se dará também a representação, delimitando a área de jogo dos atores.
                Destacamos em nossa pesquisa o “espaço cênico”, aglutinador e vetor transformador da encenação. Foram realizadas experimentações nos espaços históricos da Balaiada, em Caxias, no Memorial da Balaiada, num “espaço-rio”; circular na Praça do Mercado Municipal de Itapecuru Mirim, onde Negro Cosme foi enforcado, iniciando na Cadeia Pública, onde esteve preso, e em Nina Rodrigues, na Pç. Central da cidade. Em Nina Rodrigues e Caxias foram realizadas oficinas com inclusão dos participantes da mesma no espetáculo. 

                Nossa concepção de teatro, neste momento histórico importante de nosso país, está pari passu com a “história a contrapelo” de Walter Benjamin. O seu interlocutor, Heiner Müller, com seu “Anjo Infeliz”, lança a todos nós o movimento que vêm das margens, que se direcionam às pedras, que propõe retomar uma respiração que foi sufocada, e que impulsiona-nos ao vôo sobre os escombros da história, para desenterramos as “centelhas de esperança” que nos impulsionará à resignificação identitária de construtores de nossa própria História. Este é o centro nevrálgico, incandescente e reflexivo do qual apoiamos nossa proposta de encenação de NEGRO COSME EM MOVIMENTO.   

                                                                                                                                          
TEXTO: Luiz Pazzini
FOTO 1: Igor Nascimento
FOTO 2: Paulo Socha
FOTO 3: Davi Marcos

sábado, 14 de setembro de 2013

Em cima do muro

Em cima do muro, olho os destroços e penso quanta dor está debaixo do concreto revirado, desprezado, os detalhes estão preenchidos de histórias de gente que luta, que é alienada, enganada, desprezada e ainda acusada de ser o berço da violência. Porque gritar sem público através da alegoria de um anjo? Em um lugar quase desabitado, sinto o cheiro e o gosto da dor, do descaso, do cansaço do pobre, do preto, do puto, do miserável que carrega nas costas esse país chamado Brasil.
Carrega o cimento, a areia  e o cal, para construir o prédio monumental, sustenta esse sistema bem e seu filho se alimenta mal, convive com lixo e esgoto até o topo, mora perto da vala que corre água rala, finge que não vê, para não esquecer do que crê.Injustiça que soterra, afoga e cobra.História embaixo do lixo, do mijo, do lodo, do pó, guardada em escombros humanos e reduzidas em um enorme monte de nada, que grita em voz calada.   
Em cima do muro, minhas pernas tremem minha boca seca, pois onde ainda está habitado é mistura de alegria e medo, dor e calor, é samba e funk, festa e sangue. Criança na rua até tarde, assim aprende malandragem, malemolência, é inocência misturada a batida que toca e move cada um em sua busca, pra frente ou pra trás, cada um sabe o que faz.
Controlo a emoção, que é de não compreensão, quem deve falar é quem vive lá. Eu sinto, eu digo, acredito entender, mas não deve ser. É bala, é pedra  no fim do caminho...Ninho pelado e desprotegido, gente por todo lado buscando abrigo, no peito de quem oferta, traficante ou milícia, mas nunca polícia...

O Anjo Infeliz não consegue se debater porque aquilo tudo foi o mais forte que pode ver, a altura também prejudica, mas o risco não era nada comparado a essa vida. Luta de todo dia delas e deles reinventa o morro com maestria e tem até gringo que copia, a criatividade na precariedade é assim que segue a vida nessa outra cidade.


TEXTO: Lígia da Cruz
VIDEO: Davi Marcos