"Estamos reinventando o futuro, somos fragmentos do futuro em gestação, e o que mais nós necessitamos é de um público co-produtor, partícipe da cena, que leve para casa as idéias que o Teatro sempre soube tão bem insuflar nos espíritos educados para que estes possam contribuir para as transformações necessárias que nossa sociedade tem urgência de ver realizadas"

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

OUTUBRO VERMELHO: Reminescências profissionais

    “Todo documento de cultura, é um documento de barbárie”.
                                            Walter Benjamin

Acabara de me formar na Escola de Arte Dramática da USP. Era funcionário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região - SP. As duas funções que exercia na vida profissional pareciam inconciliáveis. Por um lado, a liberdade de expressão de um jovem idealista interiorano, que se propõe a buscar na metrópole paulista transgredir a moral conservadora, que sempre me perturbara desde muito cedo. Basta aqui, citar uma passagem deveras interessante e esclarecedora: na minha pequena cidade de Severínia, tinha um cinema, com advento da televisão, todos estes espaços culturais foram paulatinamente sendo fechados. Restava o footing da praça central, os bailes onde o meu corpo passou a romper os padrões ditos “normais” de dançar, juntamente com um grupo não muito numeroso; as idas às zonas de prostituição, isto quem tinha dinheiro para pagar, o que me enojava; os namoros escondidos entre os arbustos e recantos da cidade, e a iniciação em determinados tipos de drogas muito comum naqueles inícios de setenta. Vejam, eram um Brasil sob os auspícios da ditadura militar, em que eu observava atentamente os acontecimentos pelos noticiários, revistas e os jornais da época. Mas, tudo isto pareceria muito distante, queria me aproximar daquele furacão que se alastrava pelo Brasil.
O flash-back propõe uma leitura não-linear, mas aos saltos. Voltando ao cinema! Um dos últimos filmes que assisti na minha cidade foi Satyricon de Fellini. As imagens transgressoras estampadas no cartaz atraiu uma multidão, que estava acostumada aos Sansões e Dalila, Dólar Furado, Mazzaropi e os épicos do cinema americano, e o que estava para ser exibido na telona, era uma novidade! Bem, eu fiquei encantado com o que estava vendo. Não percebi que aos poucos meus amigos e praticamente o cinema todo ficara vazio, restando uns gatos pingados. Eu não entendi o que estava acontecendo, mas não queria pensar sobre aquilo naquele momento. Eu tinha certeza que encontrara o que estava querendo ver e o mundo da arte que estava querendo mergulhar. Restava agora caminhar pela rua solitária, ainda sob o efeito-choque que o filme me proporcionara. Minha cabeça funcionava a mil por hora: como enfrentar os leões dos meus amigos das noites do “coça saco” na praça, de que forma me defender, se não tinha ainda elementos estéticos de defesa, para falar sobre o que acabara de presenciar? Literalmente, eles me trucidaram e mostraram o quão conservadores eles eram. Foi aí que percebi que ali não era mais o meu lugar!
Mas, o episódio Satyricon, ainda não terminara. Fui atrás de material que pudesse esclarecer a percepção estética refinada que o filme me proporcionara. Achei um documento: uma revista recente, com umas três paginas dedicadas a elogiar o filme do mestre italiano Fellini, e o sucesso de bilheteria nos grandes centros do país. Levei a revista para os meus amigos na praça e li a reportagem inteira, que ficaram de cara no chão, mas acharam mesmo assim, que aquilo era “putaria”, “sem-vergonhice”, “coisa de desviados”, etc e tal. Mas tinha cumprido o que me prometera: desmascarar a hipocrisia!
Voltando à contradição entre ser artista de teatro e funcionário público. Irritava-me às vezes, as sentenças, em que poucos eram os ganhos dos trabalhadores, e mais dos empresários. Mas sempre acreditei que a Justiça mesmo assim os defendia. Naquele período, o teatro era governado sob a égide da censura, e assim, caminhava aos trancos e barrancos, dando murro em ponta de faca, mas os mais bravos artistas e intelectuais resistiam contra a agressão física e simbólica. Era um período difícil! A Aids se alastrou! Perdemos amigos queridos. Éramos tratados como leprosos. Mas, todos sabem o desfecho: quem não se cuida se estrumbica! E a AIDS não era uma epidemia somente de homossexuais!
Decidi abdicar do salário que prometia sempre subir e da tristeza que se abatia em São Paulo, era quase insuportável tudo aquilo que estava vivendo. Ganhei o mundo. Atravessei a transamazônica, fui parar no meio da floresta, e fui percebendo o quanto tínhamos sido roubados:  a floresta engolira a estrada de ferro que se alastrara para roubar nossas riquezas. Agora, íamos lá buscar os trilhos de ferro, única riqueza que restara de nossos colonizadores, claro, para os bolsos de outros mais bem sucedidos em nossa sociedade.
A exuberância do Pará me fascinara, mas também a tristeza continuava à tiracolo. Quando assumi sair pelo mundo-Brasil não acreditava que tudo seria maravilha, pelo contrário, não era tão desinformado assim. Mas precisava continuar: fui para Fortaleza - Ceará. O dinheiro que guardara acabou rapidamente. Não podia dar aula em escola pública, porque não era formado em Licenciatura em Teatro. Restava assim - o artesanato! Naquele período, a era hippie já era ultrapassada, não me sentia um deles! Não queria viver pelas ruas, em qualquer lugar - um homless. Circulava entre os estudantes da Universidade Federal do Ceará, as delícias das águas cristalinas das cachoeiras de Maranguape e a beleza paradisíaca de Canoa Quebrada, quando ainda era paraíso, hoje, um dinossauro do capitalismo à céu aberto sobre as antigas dunas brancas soterradas pelo luxo dos milionários do Brasil e do mundo. Isto foi o que vi, depois de trinta anos. Era aqui que queria chegar!
Mas para chegar aqui, voltei à São Paulo, cursei Licenciatura em Teatro, lecionei em escolas da capital, e depois, voltei ao nordeste, para o Maranhão - UFMA, voltei a ser funcionário público, mas agora da Educação, onde pretendia chegar. Vejam que a contradição entre ser funcionário público e ser artista já não me perturbava mais. Educação e Teatro passaram a fazer parte do meu menu profissional. Caiu por terra a idéia de ser somente artista. Para mim, as duas coisas passaram a fazer parte do que hoje se denomina na academia: artista-docente!
Mas, o Maranhão tem seus mistérios. A Ilha rebelde, encantada, dos amores, da maior oligarquia brasileira, continua ... Mas, a revolta de vaqueiros, sertanejos, caboclos, índios, negros aquilombados, libertos, etc, aqui fez sua morada: a Balaiada. Atrás das belezas e da riqueza deste Estado, esconde-se a miséria, a corrupção, e o desgoverno, não muito diferente em outros recantos encantados deste imenso latifúndio empresarial. Mas, aqui a resistência se faz presente na cultura popular e na cultura erudita também.
Mas porque dei tantas voltas? Por que é necessário voltar ao passado, entremeando o presente, e projetarmos no futuro? Porque eu queria falar brevemente sobre o projeto memória e encenação do Cena Aberta, já exposto aqui neste blogspot, e de nossa ida para Aracati, para  participar do IX FESTMAR - Festival Internacional de Teatro de Rua, que aconteceu entre os dias 21 a 25 de outubro de 2013, na cidade histórica de Aracati, que está completando 171 aninhos.
A alegria dos profissionais do Teatro de Rua esteve presente nesta semana inesquecível. Talvez vocês entendam o por que da emoção e das voltas que dei para chegar aqui. Isto é uma narração, com características épicas, líricas e dramáticas, poderia fazer parte de uma performance, vou pensar sobre isso! Tem elementos de teatralidade, ambigüidade, performatividade, que não posso expor aqui - a cena será mais propícia! Bem, o intercâmbio teatral entre os artistas foi o ponto chave de toda esta experiência. Um detalhe refinado de nossa apresentação de Negro Cosme em Movimento na frente da catedral da cidade: uma criança de sete anos, nos parou, e perguntou - o teatro acabou? Nós: Sim, hoje pela manhã, aqui em frente, na Secretaria da Cultura. Ela: Eu sei onde é. Nós: Você viu Negro Cosme? Ela: Sim! Nós: Gostou? Ela: Sim. Tem mais, quando? Nós: O ano que vêm! Ela: Preciso ir, minha mãe está me chamando, é aquela ali. A mãe abanava a mão para a garota, e ela se perdeu no meio da multidão da Praça da Igreja Matriz, que comemorava os 171 anos da cidade, com o céu bordado de explosões coloridas dos fogos de artifícios.   
As crianças de Aracati foram o ponto alto do evento. Riram e ficaram sérias quando a situação cênica o exigia. O ciclo se expande:  chegamos à Casa das Bicas, Coroadinho, bairro periférico de São Luís, e para nossa surpresa, as crianças recebem também o espetáculo entre risos e seriedade, pela programação da Aldeia SESC-Guajajaras (30/10), e no LABORARTE (31/10), resistência da cultura popular maranhense, a responsabilidade de apresentar meu primeiro trabalho de teatro no velho casarão onde formou e abrigou os sonhos de tantos artistas, e nossa  homenagem à Nelson Brito, que com certeza estará nos vendo com seu olhar de homem que resistiu enquanto viveu...   
Os pequenos espectadores de hoje, serão os grandes estetas críticos do futuro. Beijos para todas as crianças de Aracati, do Coroadinho pela co-produção, a todos os aracatienses, e aos organizadores do Festival. Aos governantes - que continuem promovendo este encontro dos artistas do Brasil e do mundo... Tanto aqui como acolá!...
EVOÉ BACO!


                                                                                  Luiz Pazzini







Fotos: Produção IX Festmar

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