"Estamos reinventando o futuro, somos fragmentos do futuro em gestação, e o que mais nós necessitamos é de um público co-produtor, partícipe da cena, que leve para casa as idéias que o Teatro sempre soube tão bem insuflar nos espíritos educados para que estes possam contribuir para as transformações necessárias que nossa sociedade tem urgência de ver realizadas"

terça-feira, 5 de novembro de 2013

DRAMATURGIA MARANHENSE DA DÉCADA DE SETENTA: ABC da Cultura Maranhense, de Aldo Leite

A escritura dramática do texto ABC da Cultura Maranhense, de Aldo Leite, retrata tanto na forma como no conteúdo, um momento difícil/cruel da política brasileira – a ditadura militar. Período em que os artistas faziam uso de metáforas poéticas, para driblar a censura. O autor buscará inspiração no Período Imperial Brasileiro, nos materiais de poetas, jornalista-historiador e dramaturgos, como Gonçalves Dias, Maria Firmina dos Reis, João Francisco Lisboa, Arthur Azevedo e outros, o mote para a sua primeira obra. Neste sentido, realiza um resgate da memória histórica de sua terra natal, ampliando para a situação brasileira.
A forma encontrada pelo artista para explicitar o estado de paralisia, estupefação e medo, em que viveu o povo brasileiro, foi o “drama estático”. Este, é inaugurado pelo tragediógrafo grego Ésquilo, em que as caracterizações de suas personagens são realizadas com largos traços, sem multiplicidade de sutis qualificações, e abundantes metáforas. Seus primeiros trabalhos são comparados à hieraticidade das estátuas arcaicas, com os membros rígidos e semblante sorridente e pétreo. Primeiro dramaturgo a introduzir na cena a aparição de fantasmas, como é o caso de Dario, rei morto, em Os Persas e a assassinada Clitemnestra que aterroriza seu filho matricida Orestes, em as Eumênides. Neste sentido, dá-se início ao “diálogo com os mortos”. Mas convém explicitar que já nos primórdios do teatro primitivo, os fantasmas já se faziam presentes nos rituais.
O caráter estático e hierático da encenação grega, com seus altos coturnos e suas máscaras que despersonalizavam os atores, davam um tom ritualístico ao espetáculo. No Egito, por ocasião dos rituais à deusa da fertilidade Osíris, esta, transformada em “escultura móvel”; na Grécia, temos as “estatuas móveis” de Dédalos, muito semelhante à mobilidade dos humanos; na Roma Imperial, as representações eram realizadas com pequenas estatuetas movidas por fios em festins, mas foi na Idade Média, que surgiu a palavra “marionnette”, derivação francesa, para designar as pequenas imagens da Virgem Maria, que passa de estátua de adoração dos fiéis à personagem animada em presépios. Não resta dúvida que a marionete entrou na cena teatral mundial para deixar sua marca da busca pelo sagrado, pelo divino.
Mas o leitor pode estar se perguntando o por quê deste mergulho nas origens da marionete. Pois bem, Aldo Leite, no seu texto cria bustos de personagens históricos da cultura maranhense, que durante a representação adquirem movimentos. Na própria abertura do texto, existe uma cena, em que um Secretário da Cultura, está inaugurando o busto do pseudo-intelectual Camilo Calazans, na Pç. do Pantheon - Centro de São Luís, onde estavam as estátuas dos ilustres maranhenses, retiradas porque as mesmas foram depredadas, pichadas, etc. O Secretário inaugura o busto e apresenta todas as Secretarias da Cultura criadas em seu governo. Enfim, figuras marionetadas pela sua administração.
Mas continuemos. Os estudiosos do teatro não estranham quando teóricos do teatro, como Maurice Maeterlinck, na segunda metade do século XIX, defenderá em seus escritos, a teoria do Teatro de Andróides, em substituição aos atores, com seus “egos inflados”, que deve ser contido na obra de arte, porque impedem a mostração do divino. Teoria esta que encontrará em Edward Gordon Craig, no início do século XX, o seu mais ardoroso defensor, com a sua Teoria da Supermarionete. Critica ele o egocentrismo dos atores, a sua vaidade, proclamando o surgimento de um novo ator, desprovido da exacerbação do ego, buscando o resgate da divindade sem apossar-se dela. A Biomecânica de Meyerhold busca o ator marionetizado, a imobilidade na representação, desprovendo o ator de sua humanidade, na busca da perfeição para apresentar a obra de arte. Kleist, cria em seu ensaio, em um diálogo imaginário com um famoso bailarino que encontra em uma praça, que fala do ego dos atores, e que isto, os impede de manifestar o divino em sua essência. Faz apelo aos atores, de que estes precisam observar a linha natural do movimento, e assim captar a sua essência e servi-la, não esvaziando assim o seu significado. Neste sentido, restitui-se a intuição do ator, fazendo com que este perceba que é apenas um servidor de uma força maior. Tadeus Kantor, em seus espetáculos busca clarificar esses conceitos, solicitando a ausência do humano para manifestar o elemento mágico. A desumanização dos atores irá lhes conferir um valor imagético mais forte, revestindo-os com uma sacralidade de morte simbólica. Estes teóricos buscavam o sonho de Aneantização: redução do intérprete ao nada frente à efíngie do personagem; a organização da ação cênica sobre modelos mecânicos e plásticos.
Depois deste passeio por esta síntese do desenvolvimento da marionete durante os séculos, mais uma coincidência teatral salta aos olhos, quando no mesmo período histórico, na década de setenta, Aldo Leite e Heiner Müller, este último tendo como orientação para a sua escritura dramática, a Nona Tese (Anjo da História), in Sobre os Conceitos de Filosofia da História, de Walter Benjamin. O dramaturgo alemão, colocará em cena, o horror nazista e a ditadura do stalinismo, através de uma obra intitulada Der Auftrag (A Missão ou Lembranças de uma Revolução), em que lança seu olhar para a América Latina, dizendo ser esta “tumores benignos”. Aldo Leite, fazendo uso do recurso dramatúrgico do fragmento, denominado por Müller de “Poética Dialética do Fragmento” e no “diálogo com os mortos” benjaminiano, que faz parte de uma de suas teses – a “história a contrapelo”. 
O ABC da Cultura Maranhense, em sincronia com o movimento de resistência dos intelectuais e artistas do Brasil e do mundo, resgatam nossa memória histórica, e na forma, explicitam a própria história do teatro. No texto de Aldo Leite, são colocados em debate, questões pendentes e presentes na atualidade, no que se refere à política e ao teatro.
Os pensadores e fazedores do teatro, buscam no século XXI, veredas para chegarem ao seu público, trazê-lo de volta para comungar junto de uma nova era do teatro: que precisará ser construída, buscando no seu passado histórico, as “centelhas de esperança” de um “novo por-vir”, mas também na própria construção periodística, rica e diversificada da cena teatral mundial.
O texto de Aldo Leite é para mim um desafio impar na minha vida de pensador e fazedor de teatro - uma relíquia da dramaturgia maranhense, por tudo que expusemos acima. Como diz João Francisco Lisboa, o Tímon: “É sempre o mesmo teatro com guarda-roupa e cenário novo, e com repertório retocado e acomodado ao gosto dos tempos”, pois, “Os corações ulcerados, como arpas eólias feridas pelos ventos, precisam exalar em gemidos a sua dor”.

                                                                                                                                                           

TEXTO: Luiz Pazzini

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